Leonardo Da Vinci
Estudos de feto no útero, a parede uterina e a placenta, com mecânica e óptica
Quando eu era pequena achava o entardecer lindo. Todas aquelas cores luminosas e dispersas olhando para a terra. Enfim. Desejava um dia poder colocar no papel, com meus lápis de cor Faber-Castell, todas as formas nobres que o céu assume pouco antes de receber a lua. Um dia tentei. O estojo era aquele de “dois andares”, lembra? Com “Aquarela” no comercial da TV. O resultado foi medonho. Talvez se eu tivesse todas as cores e as tintas especiais dos grandes pintores o resultado fosse diferente. Talvez me descobrissem como grande promessa da pintura mundial. Não entendo como tanta fantasia cabe na cabeça minúscula de uma criança, e como essa fantasia toda vai embora depois que a criança cresce. A rigor, se o cérebro cresce, existe então mais espaço para mentalizações surreais, certo? Não precisa responder. Óbvio que nunca consegui imitar a natureza. Às vezes me contento em vê-la, acima de mim ou sob os meus pés, ou ao meu lado. Existe coisa mais perfeita do que um corpo humano, com todos os seus cantos, encantos, encontros e todas as suas falhas? Ainda – e Caio Fernando Abreu sabia muito bem disso quando falou em carnes, cheiros, pobreza e nobreza do corpo do outro – todas essas pequenas falhas expostas ao julgamento? Nada é mais humano e natural do que isso. Me contento, e isso pra mim é pouco, em fazer parte dessa natureza. Boris Vian me entenderia:
“Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomanglo
De limpa chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente”
Depois desse último verso chega então o momento em que Ferreira Gullar vocifera: “Mas que discurso chato! O que foi que Beckett fez contigo, menina?”. Fique sossegado, Gullar. Beckett é inocente. Nem todo teatro do absurdo dele nasce em mim.
“Eu nunca estou contente” não me parece pessimista. Encontro nisso um recurso megalomaníaco que me torna um pouco ansiosa, na verdade. Não cabe em mim a vontade de viver. Eu disse EM mim, e não A. É um pensamento circular e inútil, só como pensamento. Não sei exatamente como vou plantar minha eternidade. Dizem que toda obra de arte é uma tentativa de transcender a morte e a inevitável finitude do corpo. Apego à vida, em essência. Permanecer na terra por um pouco mais de tempo do que o corpo. Shakespeare que o diga. Leonardo Da Vinci, então? Arte e ciência em um corpo só. GÊNIO.
(Garçom, traz mais uma cerveja?)
Mas não sou artista, não tenho dons grandiosos como pintura, matemática, filosofia. Não sou cientista. Não sei arquitetar teorias ou grandes argumentações que tenham alcance mundial. Não tenho a resposta para a maioria das tuas perguntas. E agora vocês vão me dizer que a maternidade foi a forma encontrada pela natureza (Eu uso a palavra natureza. Não sei exatamente o que pensar quando falo em ORIGEM DO UNIVERSO E DAS ESPÉCIES) para que a eternidade fosse alcançada. Não! Não é disso que falo! Acho bonito pensar assim e tudo mais. Faz sentido. Mas sem poesia agora. Não estou falando disso. Falo do MEU corpo mesmo, dos MEUS anseios. Do começo e do fim de uma vida. Nascimento e morte. Existe um teor orgânico em tudo isso. E para onde iria a vontade de viver, se no próprio corpo ela não caberia? Se tudo sucumbe assim, o que é que fica?
Um filho faria parte da minha vida enquanto ela existisse fisicamente, seria a continuação de uma parte do meu corpo na forma de outro ser, com idéias próprias e coração como tambor. Não seria EU. Entende ou acha egocêntrico? Não importa. Não seria EU. Sístoles e diástoles morrem comigo. E o que eu fiz/farei no mundo para justificar a minha existência?